Suicídio e Notificação Compulsória

Suicídio e Notificação Compulsória

Pergunta ao Dr. Marcelo Pustiglione:

Considerando que os índices de suicídio estão aumentando , como o senhor vê a obrigatoriedade de notificação ao SINAN, do ponto de vista epidemiológico , sobretudo com relação aos casos em que podem ser ligados aos ambientes e condições de trabalho?

Para responder a sua pergunta, faz-se necessária uma indagação inicial: “Para que serve o Sistema de Informação de Agravos de Notificação – SINAN?”
Este sistema de informação do Ministério da Saúde configura-se como uma importante ferramenta epidemiológica de abrangência nacional. O SINAN é alimentado, principalmente, pela notificação e investigação de casos de doenças e agravos. Aquelas de notificação obrigatória constam de uma “Lista Nacional de Doenças de Notificação Compulsória” regulamentada pela Portaria de Consolidação nº 4, de 28 de Setembro de 2017, anexo V – Capítulo I. Entretanto, é facultado a estados e municípios incluir outros problemas de saúde importantes em sua região, como varicela no estado de Minas Gerais e difilobotríase no município de São Paulo.
Para compreender melhor esta questão é preciso relembrar que a epidemiologia é o ramo da medicina que estuda os diferentes fatores que intervêm na difusão e propagação de doenças, sua frequência, seu modo de distribuição, sua evolução e a colocação dos meios necessários para a sua prevenção.
Portanto, a utilização efetiva do SINAN por meio de notificações completa e adequadamente preenchidas permite a realização do diagnóstico dinâmico (no tempo e no espaço) da ocorrência de um evento na população: no caso em questão o suicídio, mais especificamente o suicídio no e pelo trabalho. Este recurso de vigilância epidemiológica pode fornecer subsídios para explicações causais dos agravos de notificação compulsória, além de vir a indicar riscos aos quais as pessoas estão sujeitas, contribuindo assim, para a identificação da realidade epidemiológica de determinada área geográfica, setor ou segmento. O seu uso sistemático, de forma descentralizada, contribui para a democratização da informação, permitindo que todos os profissionais de saúde tenham acesso à informação e as tornem disponíveis para a comunidade. Trata-se, portanto, de um instrumento relevante para auxiliar o planejamento da saúde, definir prioridades de intervenção, além de permitir que seja avaliado o impacto das intervenções.

Prof. Marcelo Pustiglione – Médico do Trabalho do CEREST Estadual (Divisão de Vigilância Sanitária do Trabalho)

 

Suicídio e a notificação como agravo relacionado ao trabalho

João Silvestre da Silva-Junior
Médico do Trabalho, Doutor e Mestre em Saúde Pública, Professor do Centro Universitário São Camilo, Editor Associado da Revista Brasileira de Medicina do Trabalho

Estimativas globais da Organização Mundial da Saúde indicam que cerca de 817 mil pessoas cometeram suicídio em 2016. Comparando com dados de 1990, houve um aumento de 6,7% no número de mortes por este motivo ao redor do mundo. As taxas foram maiores para os homens, quando comparado com as mulheres, e para aqueles em posição socioeconômica mais precária[1].
Em 2017, as regiões do globo onde o autoextermínio apresentou maiores impactos nas causas de morte foram o Leste Europeu, por exemplo a Ucrânia (30,6 casos a cada 100.000 mortes), e nos países desenvolvidos da região da Ásia Pacífico, por exemplo o Japão (22,4 casos a cada 100.000 mortes). O Brasil apresentou taxas bem menores (6,6 casos a cada 100.000 mortes), mas por serem mortes evitáveis elas devem ser objeto de estratégias de prevenção[2].
A ideação suicida, e a tentativa de suicídio, decorrem de quadros mentais graves, principalmente os transtornos de humor (depressivo e bipolar). Fatores de risco como carga genética, variáveis demográficas, aspectos socioprofissionais, estado de saúde e questões psicossociais podem predispor ao desenvolvimento ou agravamento de quadros de adoecimento mental. Portanto, ações de promoção da saúde e prevenção de doenças devem atingir diversos níveis de abordagem.
Como o trabalho é um determinante social da saúde, a inserção laboral pode impactar desfavoravelmente a saúde do trabalhador. Condições ambientais insalubres, com exposição aos riscos ocupacionais clássicos (físicos, químicos e biológicos), e uma organização do trabalho tóxica, com conteúdo e contexto inadequados que representem um risco psicossocial, são elencadas como situações que irão impactar negativamente a saúde física e mental dos expostos.
Na última década, casos de trabalhadores que cometeram suicídio nos locais e/ou horário de trabalho chegaram à grande mídia. Em algumas situações, as vítimas deixaram claro que o seu desespero e opção por se matar tinha relação com questões vivenciadas no ambiente laboral. Na França, ex-executivos da empresa de telefonia France Telecom estão respondendo na Justiça por assédio moral que pode ter levado mais de 30 funcionários ao suicídio[3]. Na Ásia, a fabricante de microcomponentes eletrônicos chinesa Foxconn ficou conhecida pelo volume de casos de autoextermínio e ações paliativas para evita-los, como o gradeamento de suas instalações e a obrigatoriedade de assinatura de cláusulas de “não-suicídio”[4].
Pesquisadores franceses que estudaram o fenômeno descrevem características no clima organizacional com desestruturação do apoio coletivo nos espaços de trabalho pela busca incessante por melhores resultados, as avaliações individualizadas com punição pelo erro e ausência de reconhecimento dos acertos, e a falta de respeito por padrões éticos nas relações de trabalho[5]. Este cenário de permanente rivalidade, estímulo à competição e avaliações baseadas na produtividade do trabalhador bloqueiam estratégias coletivas de defesa e desfaz redes de solidariedade, dando lugar ao isolamento, à depressão, ao suicídio e ao silêncio dos pares.
Épocas de instabilidade econômica, com aumento das taxas de desemprego, estão associadas à insegurança dos trabalhadores quanto ao medo de ser demitido, o que potencializa angustia sobre a manutenção do próprio sustento financeiro. Por vezes, pode haver a percepção de que é necessário se submeter a condições de trabalho nocivas, que desgastam sua saúde física e mental. Ao longo do tempo pode haver a redução da capacidade para o trabalho, predispondo a situações de presenteísmo, com consequente avaliações negativas por seus supervisores e pares. Para aqueles fragilizados emocionalmente a única saída deste ciclo vicioso pode ser o suicídio.
A Lista Nacional de Notificação Compulsória do Sistema do Informação de Agravos de Notificação (SINAN) e a legislação previdenciária sobre a emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) regulam que os acidentes de trabalho fatais são de notificação imediata, em até 24 horas[6,7]. Portanto, havendo o reconhecimento de que há relação de nexo entre trabalho-doença-causa de morte as notificações são necessárias para fins e vigilância em Saúde do Trabalhador. Tabus na identificação do suicídio relacionado ao trabalho decorrem tanto pela omissão dos empregadores na emissão CAT, em decorrência do conflito de interesse em reconhecer a responsabilidade sobre o caso; quanto aos problemas relacionados ao preenchimento incompleto das Certidões de Óbito, pois quando o médico ignora o campo “ocupação” poderá haver uma maior dificuldade no estabelecimento de nexo.
O trabalhador que seja contribuinte da Previdência Social e tenha cometido suicídio poderá deixar um benefício do tipo pensão por morte para os seus dependentes. A caracterização da espécie acidentária do benefício dependerá de uma avaliação médico-pericial das informações relativas ao óbito para configurar a relação entre a exposição aos fatores de risco no trabalho e a doença que foi gatilho para o óbito. Esta caracterização poderia ser mais rápida e fácil caso houvesse a apresentação de uma CAT. Todavia, em geral, o processo não contém este documento, e a análise será baseada em outras informações, como o Boletim de Ocorrência policial ou Certidão de Óbito com dados sobre o momento e o local da morte traumática.
O suicídio tem uma complexidade no entendimento da sua causa, mas pode ser compreendido como um sinal claro de que o trabalhador precisava de um apoio que não foi disponibilizado no prazo necessário. Os profissionais de saúde no trabalho devem trabalhar em duas frentes: mapear outros casos sob risco de autoextermínio e promover a saúde no trabalho. Para a primeira estratégia é necessário a busca ativa de casos potenciais, a fim de encaminhamento para assistência especializada o mais breve possível. Ações preventivas devem ser implantadas o quanto antes, principalmente no enfoque da mitigação dos riscos presentes no ambiente e condições de trabalho e no acompanhamento longitudinal daqueles que estejam sob maior risco epidemiológico para transtornos mentais, em especial os distúrbios de humor. De um modo geral de divulgação de informações de sensibilização para cuidados de saúde e busca de apoio na equipe de saúde da empresa são estratégias bem-vindas.
Por fim, o tema deve ser discutido à luz técnico-científica para que novas formas de organizar o trabalho sejam desenvolvidas e praticadas, com o intuito de melhorar os padrões de saúde dos trabalhadores, e não o seu inverso. A inclusão de discussões mais amplas quanto às políticas públicas voltadas para a saúde mental e a sua interface com o trabalho poderiam contribuir para a criação de estratégias de ação visando a prevenção do autoextermínio. E o estímulo para que haja um aprofundamento do estudo das causas de morte, com o intuito de melhorar legislações e protocolos de notificação, poderiam subsidiar a sociedade de informações sobre o suicídio relacionado ao trabalho a fim de que seja possível fomentar cada vez mais a ampla proteção aos trabalhadores[8].

Referências:
[1] Naghavi M. Global, regional, and national burden of suicide mortality 1990 to 2016: systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2016. BMJ. 2019; 364 :l94. Disponível em: <https://www.bmj.com/content/bmj/364/bmj.l94.full.pdf>
[2] Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME). Global Burden of Disease. Disponível em: <https://vizhub.healthdata.org/gbd-compare/>
[3] Em julgamento histórico, executivos na França respondem por suicídio de 35 funcionários. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/2019/07/12/em-julgamento-historico-executivos-na-franca-respondem-por-suicidio-de-35-funcionarios.ghtml>
[4] Foxconn suicides. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Foxconn_suicides>
[5] Souza PCZ, Souza AMRZ. Suicídio e trabalho: o que fazer?. Cadernos de Saúde Pública. 2010;26(12):2422-2423.
[6] Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 4, de 28 de setembro de 2017. Consolidação das normas sobre os sistemas e os subsistemas do Sistema Único de Saúde.Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0004_03_10_2017.html>
[7] Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>
[8] Cortez PA, Veiga HMS, Gomide APA, Souza MVR. Suicídio no trabalho: um estudo de revisão da literatura brasileira em psicologia. Revista Psicologia Organizações e Trabalho. 2019;19(1):523-531.

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