A recente publicação da Portaria MTE nº 1.131, de 3 de julho de 2025 (https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-mte-n-1.131-de-3-de-julho-de-2025-640219274), promoveu alterações significativas no artigo 81 da Portaria MTP nº 667/2021 (https://in.gov.br/en/web/dou/-/portaria/mtp-n-667-de-8-de-novembro-de-2021-359094059), trazendo mudanças substanciais na forma de aplicação de multas por falhas no envio de informações ao eSocial, especialmente nos eventos de Saúde e Segurança do Trabalho (SST).
Se por um lado a nova regulamentação torna os critérios mais objetivos e os valores mais previsíveis, por outro, acende um alerta sobre o aumento da responsabilidade técnica de profissionais e organizações. Neste artigo, analiso o impacto sob diversos olhares do médico do trabalho, considerando seus múltiplos campos de atuação.
O que muda na prática?
Valores e critérios mais claros:
- Multa mínima: R$ 443,97
- Acréscimo por trabalhador afetado: R$ 104,31
- Multa máxima: R$ 44.396,84
- Reincidência, oposição à fiscalização ou desacato: multa dobrada
- Infrações entre 01/01/2020 e 02/07/2025: desconto automático de 40%
OLHARES DA MEDICINA DO TRABALHO
- Médico do trabalho em clínicas de assessoria
Para quem atua em clínicas de prestação de serviços em SST, o novo modelo exige qualidade técnica, precisão nos registros e rastreabilidade de informações. Um erro de digitação no S-2220 ou a omissão do S-2240 podem resultar em multas relevantes ao cliente — e também comprometer a responsabilidade técnica e a reputação da clínica.
Esse cenário traz uma oportunidade real de valorização profissional: ao demonstrar que o cumprimento correto das exigências legais depende de conhecimento técnico apurado, é possível reposicionar o trabalho do médico do trabalho como atividade intelectual de alto impacto, que não pode ser tratada como mera formalidade documental.
Trabalho de qualidade exige remuneração adequada. O médico que entrega um PCMSO consistente, compatível com o PGR, que orienta tecnicamente sobre os eventos do eSocial e previne passivos deve ser remunerado à altura de sua responsabilidade técnica e jurídica.
Além disso, há espaço para educar o cliente, reforçando que SST não se resume à emissão de ASOs (Atestados de Saúde Ocupacional) ou à formalização de documentos, mas sim à gestão de riscos e à proteção da empresa diante de um ambiente fiscal mais rigoroso.
Reflexão: Como transformar um modelo reativo (emissão de laudos por exigência) em um modelo preventivo com foco em conformidade técnica e valorização profissional?
- Coordenador médico do SESMT
O coordenador do SESMT precisa agora redesenhar processos internos, garantir a atualização técnica da equipe de enfermagem e engenharia, e assegurar que os dados enviados ao eSocial estejam alinhados aos riscos reais. O monitoramento contínuo da qualidade dos dados e a integração com RH e jurídico passam a ser obrigatórios.
Reflexão: Estamos preparados para gerir saúde ocupacional com base em dados rastreáveis, auditáveis e com impacto financeiro direto?
- Médico do trabalho que atua em sindicatos
Para médicos do trabalho vinculados a sindicatos patronais ou de trabalhadores, a Portaria representa uma pauta estratégica de negociação coletiva. Os sindicatos podem atuar para garantir boas práticas, formação técnica continuada e exigir o correto envio dos eventos, especialmente aqueles ligados à exposição a riscos.
Reflexão: Será que os sindicatos estão preparados para discutir e monitorar o eSocial nos acordos coletivos?
- Médico do trabalho perito
Para os médicos peritos judiciais ou assistentes técnicos, a nova Portaria fortalece o papel dos registros eletrônicos como meio de prova nas ações trabalhistas e previdenciárias. A presença — ou ausência — dos eventos do eSocial (como S-2210, S-2220 e S-2240), bem como sua coerência com os documentos da empresa, será cada vez mais utilizada para embasar laudos e pareceres.
O correto input de dados no eSocial pode servir como defesa técnica da reclamada, demonstrando que o PCMSO – Programa de Controle Médico em Saúde Ocupacional está sendo executado de forma adequada, contínua e rastreável.
Por outro lado, a ausência de registros, divergências entre dados e documentos, ou ainda a existência de registros formais mas desconectados da realidade (ex: exames ocupacionais em massa, sem relação com os riscos informados), pode comprometer a credibilidade da empresa e do serviço médico envolvido.
Essa realidade demanda do médico perito não apenas conhecimento clínico e legal, mas também familiaridade com os dados eletrônicos do eSocial e a capacidade de interpretá-los tecnicamente com isenção e profundidade.
Reflexão: O eSocial será o novo “prontuário” da relação de trabalho? E como garantir que ele reflita a realidade, e não apenas um ritual burocrático?
- Professor da pós-graduação e residência médica em Medicina do Trabalho
O momento é ideal para atualizar as grades curriculares dos cursos de especialização e residência médica em Medicina do Trabalho, abordando o eSocial de forma prática, incluindo penalidades, integração com os programas de saúde e ferramentas de auditoria digital. Os médicos precisam sair da pós-graduação e residência médica prontos para lidar com essas exigências.
Reflexão: Estamos formando especialistas preparados para atuar com dados estruturados, prazos digitais e responsabilidades solidárias?
- Gerente médico do trabalho
A gestão dos programas de saúde corporativa precisa estar 100% conectada aos eventos do eSocial. Cada ação realizada (ou não realizada) terá um reflexo jurídico e financeiro. A integração com o time jurídico, contábil e de tecnologia deve deixar de ser esporádica e passar a ser estratégica.
Reflexão: Sua política de saúde do trabalhador está estruturada para dialogar com o eSocial em tempo real?
- Diretor médico do trabalho
Agora, além de responder pela direção técnica, o diretor médico deve avaliar riscos financeiros e reputacionais associados a erros operacionais na SST. A contratação de sistemas, fornecedores e consultorias precisa ser reavaliada sob critérios técnicos mais rigorosos. O compliance em SST passa a ser um tema de diretoria.
Reflexão: Ainda encaramos SST como “custo” ou já entendemos como ativo de governança?
- Médico do trabalho que atua em auditorias e certificações (ISO, ESG, acreditações etc.)
Profissionais que atuam como auditores internos ou externos em empresas com certificações ISO (ex: ISO 45001), selo Great Place to Work ou acreditações hospitalares têm agora mais uma camada de conformidade a considerar: a coerência entre o que é praticado, documentado e enviado ao eSocial.
Reflexão: Seu sistema de gestão de SST tem evidência digital compatível com os eventos exigidos pelo governo?
- Médico do trabalho em órgãos públicos e autarquias
No serviço público, a aplicação do eSocial e das penalidades ainda pode variar conforme o ente federativo, mas muitos estão integrados ou em fase de integração. O médico do trabalho em prefeituras, universidades ou autarquias passa a ter responsabilidades equivalentes às da iniciativa privada.
Reflexão: O setor público está se preparando com o mesmo rigor que o privado para a conformidade com o eSocial?
- Médico do trabalho consultor de escritórios de advocacia ou departamentos jurídicos
Este profissional tem papel-chave em elucidar aspectos técnicos de laudos, prontuários e eventos do eSocial em ações trabalhistas. A clareza dos registros eletrônicos pode fortalecer ou fragilizar teses jurídicas — tanto na defesa da empresa quanto nos direitos dos trabalhadores.
Reflexão: Os dados de SST usados judicialmente estão sendo produzidos com respaldo técnico suficiente?
- Médico do trabalho que atua com tecnologia em saúde (SaaS, startups, sistemas de gestão)
Com a consolidação do eSocial como sistema nacional, soluções digitais de SST devem ser pensadas para garantir integridade dos dados, interoperabilidade com o eSocial e usabilidade clínica. O médico do trabalho precisa atuar como “Product Owner” das soluções que usa e recomenda.
Reflexão: O médico do trabalho está envolvido no desenho dos sistemas que usa ou é apenas usuário final?
- Médico do trabalho especialista em saúde mental organizacional
Dado que eventos como o S-2220 e S-2240 envolvem riscos psicossociais e a relação com afastamentos por transtornos mentais, o especialista em saúde mental do trabalho deve garantir que os fatores psicossociais do trabalho estejam sendo corretamente mapeados, registrados e encaminhados no eSocial.
Reflexão: Como garantir que os fatores psicossociais do trabalho não fiquem invisíveis nos sistemas de gestão de SST?
- Médico do trabalho influenciador, comunicador ou líder associativo
Muitos médicos do trabalho hoje são líderes de opinião nas redes, em grupos de trabalho ou em associações regionais e nacionais de outras entidades (como ABQV, ABRESST, ABERGO, etc). Esses colegas têm um papel importante em multiplicar a informação correta, combater fake news e conduzir discussões técnicas com responsabilidade ética.
Reflexão: Como usar sua influência para mobilizar a classe médica frente às mudanças regulatórias?
- Médico do trabalho em associações regionais (como a APMT) e na ANAMT
Quem atua em entidades representativas da Medicina do Trabalho, como a ANAMT – Associação Nacional de Medicina do Trabalho, APMT e outras associações regionais, tem papel estratégico na mediação entre a categoria médica, os órgãos reguladores e o setor produtivo. A Portaria MTE nº 1.131/2025 traz uma nova realidade regulatória que precisa ser compreendida, debatida e difundida com responsabilidade técnica.
Esses profissionais devem liderar o processo de esclarecimento à categoria, promover eventos, notas técnicas, posicionamentos públicos, além de defender que as políticas públicas em SST considerem a complexidade técnica da prática médica e não se resumam à lógica puramente burocrática ou punitiva.
Além disso, podem atuar junto ao MTE – Ministério do Trabalho e Emprego, CFM – Conselho Federal de Medicina, MPS – Ministério da Previdência Social e demais entidades na interpretação da norma, na proposição de ajustes regulatórios e na defesa de condições justas de trabalho e remuneração para os médicos do trabalho diante das novas responsabilidades impostas.
É também papel dessas lideranças fomentar a educação médica continuada sobre o eSocial, indicadores de saúde, integração com PGR – Programa de Gerenciamento de Riscos / PCMSO, ética profissional e boas práticas na documentação eletrônica.
Reflexão: Como as entidades médicas podem liderar a adaptação da especialidade à era da rastreabilidade digital e da responsabilização objetiva?
- Médico do trabalho nas Câmaras Técnicas dos Conselhos de Medicina (CRMs / CFM)
Os médicos do trabalho que atuam nas Câmaras Técnicas dos CRMs e no CFM cumprem papel decisivo na interpretação ética da prática profissional frente às novas exigências legais e tecnológicas.
Com a implementação da Portaria MTE nº 1.131/2025 e a ampliação do uso do eSocial, surgem dilemas éticos e técnicos que demandam respostas coerentes com os princípios da boa prática médica. Cabe a esses profissionais contribuir com pareceres técnicos, orientações normativas e formação de posicionamentos éticos, sobretudo em temas como:
- Responsabilidade técnica pelo PCMSO e pelo eSocial;
- Condições adequadas de trabalho para o exercício ético da Medicina do Trabalho;
- Assinatura de documentos sem respaldo técnico ou sem acesso direto aos trabalhadores;
- Limites da terceirização da atividade médica;
- Garantia da autonomia profissional diante de pressões administrativas.
Esses médicos também têm papel fundamental na formação de diretrizes éticas para as relações com empresas de assessoria, plataformas digitais, clínicas de emissão de ASO e perícias judiciais.
Reflexão: Como os Conselhos de Medicina devem atuar para proteger a autonomia e a dignidade da prática médica frente a pressões mercantis no âmbito da SST?
Considerações finais
A Portaria MTE nº 1.131/2025 é muito mais que uma mudança na tabela de multas: é um chamado à profissionalização da Medicina do Trabalho, além do operacional. Ela consolida o papel do médico do trabalho como agente técnico, estratégico e responsável, capaz de proteger vidas, sustentar a conformidade legal das empresas e transformar dados em decisões.
E você, amigo médico do trabalho, como tem se preparado para essa nova fase?
Convido todos os profissionais a comentarem, compartilharem boas práticas e proporem pautas de capacitação. A APMT está à disposição para ajudar a classe médica a se fortalecer e crescer com ética, técnica e protagonismo.
Artigo por: Fernando Akio Mariya – Médico graduado pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – Escola Paulista de Medicina, pós-graduado em Medicina do Trabalho pela Universidade de São Paulo / USP e especialista pela Associação Nacional de Medicina do Trabalho – ANAMT / AMB. Coordenador do módulo de Gestão da Saúde do Trabalhador no curso de pós-graduação em Medicina do Trabalho da FMUSP. Coordenador do curso de pós-graduação em Gestão de Saúde Corporativa do Hospital Israelita Albert Einstein. Diretor Médico America Latina da P&G.