Julho é mês de conscientização sobre as hepatites virais, o “Julho Amarelo”, instituído mediante legislação (Lei nº 13.802 de 10 de janeiro de 2019). A lei estabeleceu a realização anual, durante o mês de julho, de medidas relacionadas à luta contra as hepatites virais, e vem somar-se ao Dia Mundial Contra Hepatite (28 de julho), que ocorre anualmente desde 2010, conforme estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
O impacto das hepatites na carga global de doenças é grande, e sua importância não deixa de ser verificada no panorama medicina do trabalho, no qual infelizmente há, com frequência, relativa negligência no tocante aos efeitos deletérios da doença.
Porém, antes de falarmos sobre o tema… o que é a hepatite, afinal? A hepatite é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como inflamação hepática causada por uma variedade de vírus, bem como agentes não infecciosos, e que desencadeia uma miríade de problemas de saúde, alguns dos quais fatais. A hepatite viral, por sua vez, é caracterizada pela European Association for Study of the Liver (EASL) como a inflamação do fígado causada por infecção viral.
Ainda segundo a OMS, há no mundo cerca de 254 milhões de indivíduos portadores de hepatite B, ao passo que para a hepatite C a cifra é de 50 milhões; além disso, ao redor de 1,3 milhão de indivíduos perecem anualmente em decorrência de hepatites virais – números vultosos, portanto.
As hepatites seguem sendo um tema atual, dado por exemplo o incremento de 90% nos casos de hepatite A verificados no estado de São Paulo em 2025.
Hepatites virais no trabalho
Os vírus que logo vêm à mente quando ponderamos o ambiente laboral são os das hepatites B (HBV) e C (HCV), classicamente imbricados a acidentes perfurocortantes com presença de material biológico em trabalhadores da saúde, notadamente técnicos(as) de enfermagem e/ou laboratório, dentistas, enfermeiros(as) e médicos(as). Quando a fonte é sabidamente contaminada, o risco de infecção ronda 0,5 a 2% para a hepatite C, e 6 a 30% para a hepatite B. De modo a reduzir a morbimortalidade relacionada a tais casos, é expediente indispensável o estabelecimento de fluxogramas de manejo a acidentes de trabalho com exposição a material biológico, com testagem oportuna e repetida sempre que indicado, bem como a notificação de acidentes de trabalho e de infecções confirmadas (ambos os casos são de notificação compulsória semanal) e profilaxia pós-exposição, quando cabível. Ademais, investir em prevenção é custo-efetivo, uma vez que o tratamento da hepatite C, embora promova cura em 95 a 99% dos casos, é dispendioso, e os índices de cura para hepatite B são baixos, frequentemente demandando tratamento por tempo indeterminado; apesar disso, há vacina contra a hepatite B, ao contrário da hepatite C. Protocolos de biossegurança, esterilização adequada de materiais e utilização correta de equipamentos de proteção individual (EPIs) são fundamentais numa estratégia protetora.
Contudo, há também que se ponderar o risco de infecção pelo vírus da hepatite A (HAV). A hepatite A, embora não se torne crônica (como verificado nas hepatites B e C), pode causar quadros agudos graves, especialmente em adultos, os quais são o escopo da medicina do trabalho: na fase adulta o HAV apresenta comportamento mais agressivo, com risco significativo de fulminação, necessidade de transplante hepático e óbito (na faixa pediátrica, a hepatite A é costumeiramente benigna). Nesse contexto, há medidas que o médico do trabalho pode tomar para mitigar o risco de infecção, tanto diretamente sobre os trabalhadores sob sua égide, como indiretamente em relação a terceiros. Mergulhadores, salva-vidas, guardiões de piscinas, manipuladores de esgoto e/ou lixo e/ou águas pluviais, bem como profissionais da construção civil, mediante contato oral com água contaminada, podem contrair o vírus, de modo que a imunização contra o HAV é fundamental (e custo-efetiva).
Além disso, a vacinação de cozinheiros, garçons e manipuladores de alimentos contra o vírus em questão potencialmente decrementa o risco de transmissão viral a terceiros relacionados ao consumo alimentar. Em indústrias alimentícias e restaurantes, a atuação conjunta da Saúde e Segurança do Trabalho (SST) com as áreas de logística e engenharia é condição sine qua non, uma vez que tanto a saúde do trabalhador como a do consumidor estão envolvidas, e desse modo não apenas o Ministério do Trabalho está envolvido na fiscalização, mas também a vigilância sanitária (vide RDC 216/2004 da ANVISA).
A Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) possui calendário vacinal específico – abrangendo hepatites virais e outros agentes infecciosos – recomendado para o âmbito ocupacional, cuja adoção potencial deveria ser considerada por todos os médicos do trabalho.
Outras hepatites no trabalho
Não podemos esquecer de outras causas de hepatite laboral, as hepatites não virais. São quase sempre ocasionadas por xenobióticos, que são definidos como substâncias químicas estranhas ao organismo humano e abrangem fármacos, agrotóxicos, metais tóxicos, poluentes ambientais, aditivos alimentares e outros produtos químicos. Quanto tais substâncias lesam o fígado, são chamadas hepatotoxinas, e estão ligadas ao conceito de doença hepática ocupacional e ambiental (DHOA).
Os xenobióticos são mais importantes na indústria e na manufatura. Dentre as substâncias dignas de nota utilizadas, cita-se o tetracloreto de carbono (usado como agente químico na síntese de outros compostos e na limpeza especializada de componentes), cloreto de vinila (indústria de plástico) e solventes, tais como clorofórmio (indústria de plásticos e refrigerantes), dimetilformamida (indústria química, farmacêutica e polímeros) e tricloroetileno (desengordurante e matéria-prima para outros compostos químicos).
Alguns agrotóxicos (“defensivos agrícolas”), tais como pesticidas e herbicidas, ocasionam hepatite e, muitas vezes, hepatocarcinoma. São passíveis de citação o paraquate, o glifosato e organofosforados, tais como clorpirifós e malation.
As vias de contaminação mais frequentes são a inalatória e, em menor grau, a percutânea.
São inúmeras as medidas adotadas em ambiente ocupacional para reduzir o risco de contaminação e/ou suas consequências, tais como a utilização de EPIs, a ventilação e exaustão adequadas em indústrias, a adimplência a protocolos de uso e a substituição ou eliminação dos agentes, quando possível. Além disso, é importante o diagnóstico de casos suspeitos, bem como seguimento e tratamento desses casos. O contato com hepatotoxinas em ambiente laboral é de notificação compulsória semanal.
Considerações finais
No que tange às hepatites, é fundamental que o médico do trabalho busque uma aproximação holística, englobando planejamento, prevenção e manejo dos casos. O exame clínico corretamente efetuado, seja em exame admissional, seja em exame periódico, é capaz de identificar indivíduos com maior risco à exposição e desenvolvimento de hepatite, bem como detectar sinais e sintomas de hepatopatia crônica. Mais do que se ater meramente à legislação mínima obrigatória, é fundamental que o médico do trabalho “pense fora da caixa” e atue na promoção da saúde e na proteção específica, ambos braços da prevenção primária, bem como desenvolva PGR e PCMSO robustos, o que garante melhores desfechos de saúde do trabalhador e financeiros.
Artigo por: Eduardo Galvão de França de Moraes Alves – CRM/SP 209.236
Referências
Brasil. Lei nº 13.802, de 10 de janeiro de 2019. Institui o Julho Amarelo, a ser realizado a cada ano, em todo o território nacional, no mês de julho, quando serão efetivadas ações relacionadas à luta contra as hepatites virais. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2019.
Organização Mundial da Saúde (OMS). Hepatitis. Disponível em https://www.who.int/health- topics/hepatitis#tab=tab_1. Acesso em 14 jul. 2025.
European Association for the Study of the Liver (EASL). BACKGROUND MEDIA INFORMATION – Viral hepatites: a significant threat to health in Europe. Genebra, 2021. Disponível em https://easl.eu/wp-content/uploads/2021/06/2021_Viral-hepatitis-backgrounder.pdf. Acesso em 14 jul. 2025.
Organização Mundial da Saúde (OMS). WHO sounds alarm on viral hepatitis infections claiming 3500 lives each day. Disponível em https://www.who.int/news/item/09-04-2024-who-sounds- alarm-on-viral-hepatitis-infections-claiming-3500-lives-each-day. Acesso em 14 jul. 2025.
São Paulo tem aumento de 90% nos casos de hepatite A. R7. São Paulo, 12 jul 2025. Disponível em https://noticias.r7.com/sao-paulo/sao-paulo-tem-aumento-de-90-nos-casos-de-hepatite- a-12072025/. Acesso em 14 jul. 2025.
Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 5.201, de 15 de agosto de 2024. Atualização da Lista Nacional de Notificação Compulsória. Brasília, 2024. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2024/prt5201_19_08_2024.html. Acesso em 15 jul. 2025.
Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Calendário de vacinação SBIm ocupacional, Recomendações da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) – 2024/2025. São Paulo, 2024. Disponível em https://sbim.org.br/images/calendarios/calend-sbim-ocupacional.pdf. Acesso em 15 jul. 2025.
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Joveleviths, Dvora; Brum, Maria Carlota Borba; Toniasso, Sheila de Castro Cardoso; Baldin, Camila Pereira; Leitune, Juliana Castelo Branco. Doenças hepáticas relacionadas ao trabalho. In Merlo, Alvaro Roberto Crespo; de Almeida, Ildeberto Muniz; Silva-Junior, João Silvestre; Bandini, Marcia; Mendes, Renê (org.). Patologia do Trabalho. O essencial, o novo e a prática.
4ª edição. Rio de Janeiro: Atheneu, 2024.