Atualização da lista de doenças relacionadas ao trabalho

Contextualização da atualização 2020 da Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho do Ministério da Saúde do Brasil

João Silvestre da Silva-Junior (Médico do Trabalho – ANAMT/AMB; Professor do Departamento de Medicina do Centro Universitário São Camilo – SP; Consultor da Organização Pan-Americana de Saúde – OPAS/OMS para atualização 2020 da LDRT do Brasil)

Email: <silvajunior.js@gmail.com>

Em 1999, foi publicada a primeira Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT) oficial do Brasil1,2, que auxiliou na compreensão do impacto do ambiente e condições de trabalho sobre a saúde dos trabalhadores. À luz dos ensinamentos de Bernardino Ramazzini3, a discussão desta relação é necessária para qualificar as ações voltadas à vigilância em saúde e subsidiar a atenção integral aos trabalhadores, em âmbito público e privado.

A Lei Orgânica da Saúde4 recomenda que haja revisão periódica da LDRT, mas este processo nunca tinha acontecido após a publicação da primeira versão. A partir de 2019 foi iniciado o processo de atualização, organizado pela Coordenação-Geral de Saúde do Trabalhador, do Departamento de Saúde Ambiental, do Trabalhador e Vigilância das Emergências em Saúde Pública, da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde (CGSAT/DSASTE/SVS/MS), que considerou entre as premissas básicas:

  • A manutenção da taxonomia proposta por Schilling5 sobre as possíveis relações entre o adoecimento e o trabalho;
  • O uso da LDRT/1999 como base e a CID-10 como referência;
  • A construção coletiva e participativa, com a colaboração das entidades sindicais de trabalhadores e empregadores, e do controle social;
  • A incorporação de saberes e práticas acumuladas pelos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), das sociedades médicas de especialidades afins e de outras organizações profissionais da saúde, assim como de instituições de ensino e pesquisa;
  • Utilizar o conhecimento atualizado disponível na literatura técnico-científica sobre o tema.

 

Entre julho/2019 e agosto/2020, houve uma sequência de etapas:

 

  • Etapa 1 – definição de critérios técnicos, análise de outras 22 LDRT (nacionais, internacionais e estrangeiras) e realização de consulta dirigida a profissionais que fazem uso da lista em ensino, pesquisa e/ou assistência ao trabalhador;
  • Etapa 2 – formatação da primeira versão da atualização 2020 da LDRT e discussão em oficina de trabalho presencial com participação de dezenas de especialistas na área de Saúde do Trabalhador;
  • Etapa 3 – análise das recomendações da oficina de trabalho, formatação da segunda versão da lista e disponibilização para consulta pública por 60 dias;
  • Etapa 4 – análise das contribuições da consulta pública e encaminhamento para a CGSAT/DSASTE/SVS/MS da terceira versão da lista atualizada;
  • Etapa 5 – análise pelas diversas instâncias do Ministério da Saúde e publicação da atualização 2020 da LDRT.

 

A Portaria GM/MS nº 2.309, de 28 de agosto de 20206, traz a atualização 2020 da LDRT do Brasil com modificações tanto na Lista A (Agentes e/ou fatores de risco com respectivas doenças relacionadas ao trabalho), quanto da Lista B (Doenças relacionadas ao trabalho com respectivos agentes e/ou fatores de risco). Como exemplos, houve uma ampla reestruturação dos aspectos de biomecânica do trabalho e de fatores organizacionais/psicossociais relacionados ao adoecimento entre trabalhadores, introduz novos agentes de risco biológicos e químicos, e  atualiza algumas nomenclaturas . A respeito das doenças, o quantitativo de códigos diagnósticos (modelo uma letra e dois números – A15, F32, M65 etc.) foi de 182 para 347. Os capítulos que tiveram maior ampliação no número de doenças reconhecidas como relacionadas ao trabalho foram o V (Transtornos mentais e comportamentais) e o II (Neoplasia/tumores).

 

As LDRT são o retrato histórico da interface trabalho-saúde-doença em uma sociedade e a construção participativa é uma premissa primordial para indicar e discutir associações pertinentes ao contexto em análise. Portanto, a atualização é necessária para que a vigilância em saúde possa produzir dados fidedignos sobre o processo de adoecimento dos trabalhadores desta década, neste século. As informações produzidas subsidiam o planejamento de ações de promoção da saúde, de prevenção de doenças, de reabilitação profissional, entre outras, a fim de oferecer ao trabalhador uma atenção integral eficaz, que é papel do Sistema Único de Saúde (SUS).

É importante ressaltar que a LDRT é indicada para uso no SUS, faz parte da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora7 e não tem repercussão direta sobre as legislações previdenciária ou trabalhista. Apesar de em 1999 a Previdência Social ter acolhido a LDRT do Ministério da Saúde e atualizado seu Regramento8, a Portaria nº 2.309 não modifica o acesso a benefícios previdenciários, ou a caracterização acidentária dos benefícios por incapacidade temporária/permanente, ou a fiscalização da Secretaria de Inspeção do Trabalho, pois cada instância governamental tem fluxos institucionais e autonomia decisória.

 

No dia 02 de setembro de 2020 foi publicada a Portaria nº 2.3459, que tornou sem efeito a atualização 2020 da LDRT, e em 08 de setembro de 2020 foi publicada a Portaria nº 2.38410, que retoma a vigência da versão 1999 da LDRT1,2. Estas legislações não apagam a existência de condições laborais de risco com impacto negativo sobre a saúde dos trabalhadores brasileiros, que foram reconhecidas durante o processo de atualização. Além disso, uma lista de doenças relacionadas ao trabalho tem um intuito apenas exemplificativo, a fim de organizar as práticas de vigilância em saúde do trabalhador relativas aos eventos clínicos reconhecidos em determinados territórios.

 

Cabe aos profissionais da área ocupacional, e os médicos do trabalho em particular, o reconhecimento dos ambientes e processos laborais nocivos. Como o Conselho Federal de Medicina preconiza11, o estudo do nexo causal entre transtornos da saúde e as atividades de trabalho envolve o uso de ferramentas técnicas e do conhecimento científico para tal fim. O reconhecimento do risco aumentado de doenças entre determinados grupos de trabalhadores susceptíveis a condições de trabalho nocivas é importante para fins de vigilância sanitária. Desta forma é possível direcionar ações específicas que visam proteger os trabalhadores. O reconhecimento de casos relacionados ao trabalho é parte da vigilância epidemiológica, que nos permite avaliar se as ações sanitárias estão sendo eficazes.

 

Mesmo que não faça parte de uma lista do Ministério da Saúde, as diversas doenças relacionadas ao trabalho elencadas na atualização 2020 da LDRT, com respectivo agente/fator de risco, são e serão um desafio para o exercício da Medicina do Trabalho no Brasil.

 

 

REFERÊNCIAS

 

  1. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 1.339, de 18 de novembro de 1999. Dispõe sobre a lista de doenças relacionadas ao trabalho. Disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-1.339-de-19-de-maio-de-2020-257608309>
  2. Ministério da Saúde. Portaria de consolidação nº 5, de 28 de setembro de 2017b. Consolidação das normas sobre as ações e os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde. Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0005_03_10_2017.html>
  3. Ramazzini B. As doenças dos trabalhadores. São Paulo: Ministério do Trabalho, Fundacentro, 1999.
  4. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União 20 set 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>
  5. Schilling RSF. More effective prevention in occupational health practice?. Occupational Medicine. 1984;34(3), 71-79.
  6. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.309, de 28 de agosto de 2020. Altera a Portaria de Consolidação nº 5/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, e atualiza a Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT). Disponível em < https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.309-de-28-de-agosto-de-2020-275240601>
  7. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt1823_23_08_2012.html>
  8. Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Disponível em:  <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm>
  9. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.345, de 02 de setembro de 2020. Torna sem efeito a Portaria nº 2.309/GM/MS, de 28 de agosto de 2020. Disponível em < https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.345-de-2-de-setembro-de-2020-275488423>
  10. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.384, de 08 de setembro de 2020. Repristina os arts. 423 e 424 da Seção IV do Capítulo III do Título III e o Anexo LXXX da Portaria de Consolidação nº 5/GM/MS, de 28 de setembro de 2017. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.384-de-8-de-setembro-de-2020-276379302
  11. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.183, de 21 de junho de 2018. Dispõe de  normas  específicas  para  médicos  que atendem o trabalhador. Disponível em <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2183>

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Matérias Semelhantes:

Busque por período: