A arte de cuidar dos trabalhadores

Falar de medicina e arte pode ser quase sinônimo se os médicos puderem se permitir observar empaticamente qual sua verdadeira função e atuação. Zlotnik (1999) disse “O exercício da medicina é uma arte. Arte enquanto se defronta com situações que extrapolam o campo da técnica e da ciência; arte enquanto lida com pessoas em grande parte fragilizadas física e emocionalmente; arte enquanto verifica a subjetividade no encaminhamento da solução, cujo alcance, por vezes, passa pela escolha e decisão entre vários rumos possíveis”.

A palavra Arte vem do latim ars, arts e corresponde ao termo grego “tékne” que são traduzidas como as técnicas, maneira de produzir algo, ser ou agir, conduta, habilidade, ciência, talento, ofício. Entende-se arte como a expressão de beleza nas obras humanas, criação de organizações ou objetos destinados a produzir no homem um estado de sensibilidade ligado ao prazer estético. Entretanto, arte é muito mais do que somente ação, produção e deleite. É também criatividade, plasticidade mental, inteligência emocional. Ela representa a cultura de um povo ou sociedade, seus valores e sua subjetividade. Assim, ela conjuga a essência humana.

Assim, a Medicina sempre foi arte, na sensibilidade de acolher o outro em suas necessidades, não só físicas como emocionais, mas acima de tudo no sofrimento humano.

Nos últimos 50 a 70 anos, o avanço tecnológico, o aumento da população no planeta, as desigualdades sociais e as mudanças sociopolíticas e econômicas globais trouxeram para o campo da saúde uma grande mudança na formação e no comportamento do médico. A profissão passou de ser considerada ciência humana e, hoje, é fortemente marcada como ciência biológica e, com isto, alguns valores essenciais no acompanhamento de outro ser humano podem ter se perdido ou se transformado neste processo.

A primeira vista pode, equivocadamente, nos parecer distante e antagônica a prática da atividade artística e as atividades laborativas. O significado original de arte parece mais apropriado ao nosso ideal de trabalho do que o próprio significado original do trabalho.

Já quando se pensa em definição da palavra trabalho do latim tripalium, o primeiro uso da palavra vem como um instrumento da lavoura, mas a partir do séc. VI, ficou conhecido como instrumento romano de tortura composto por três paus; da ideia de sofrimento e suplício, de perda da liberdade passou-se a ser mais valorizada com a urbanização e a comercialização com a revolução industrial. Hoje o trabalho é constituinte da personalidade de cada pessoa, criando uma identidade pessoal e profissional. O trabalho dá dignidade ao homem, propicia o sustento da família e a preservação da espécie humana.

A Medicina do Trabalho poderia ser vista e, um dia será, como uma das especialidades mais ricas no verdadeiro cuidado do trabalhador podendo exercer a real função da saúde – a prevenção de agravos a saúde associada a dos riscos ocupacionais, buscando o conceito de Saúde Total, o que poder-se-ia chamar de “A Arte de Cuidar dos Trabalhadores”, não necessariamente fácil, mas possível na sua integralidade.

Cada médico do trabalho estará sempre buscando a compreensão do trabalhador de maneira global para além de sua função ou ocupação, mas na imensa teia de interrelações interpessoais, sociais, familiares, trabalhistas e da influência política sobre sua saúde, na difícil e delicada busca pelo autocuidado associado com boas condições de trabalho. Tarefa muito árdua, quer pela necessidade de formação dos médicos, quer pelo caleidoscópio de possibilidades de adoecimento físico, mas sobremaneira do psíquico no mundo atual do trabalho.

Sobre este último aspecto, a pesquisa cientifica na Medicina do Trabalho atual tem focado cada vez mais nos agravos de saúde mental. O aumento significativo de tais agravos certamente é multifatorial, mas no último ano, pode estar sendo influenciado pelos tempos sombrios em que o país está passando. Um mundo cada vez mais conturbado, de incertezas e que mina a esperança apresenta-se consciente ou até inconsciente nas vidas dos brasileiros.  O mesmo acontece com o ambiente de trabalho que reflete a nossa sociedade: competitivo, desumano, egoísta, infeliz.

O homem é um ser complexo, dotado de instinto primitivo, sexualidade, raciocínio, comunicabilidade, intuição, extrassensorialidade. Alguns mais desenvolvidos em um campo que em outros, mas todos com todas essas potencialidades e capacidade de se recriar, mudar, melhorar. A arte e a criatividade, resgatada de cada trabalhador, pode trazer um campo infinito de possibilidades pessoais e profissionais, ampliando horizontes assim como sua identidade, abrindo novos caminhos na vida. A arte lapida o ser humano e revela sua face mais iluminada.

Existe uma infinidade de profissões que lidam diretamente com a arte, propriamente dita. Pode-se citar os profissionais da arquitetura, de museus, de cinema, de teatro, sem se esquecer dos envolvidos com as artes plásticas.

Entretanto mundo coorporativo e arte parecem universos distintos, onde o primeiro é voltado para valores objetivos e concretos a o segundo valores subjetivos, lúdicos, voluptuários.

Uma boa opção de aplicação prática da arte no trabalho, dentre outras várias possibilidades, seria a formação de grupos de teatro nas empresas, com aulas práticas de interpretação trabalhando o indivíduo e o coletivo. Nos jogos teatrais o ator trabalha a voz, o corpo, a comunicação, sua relação com o espaço, emociona-se, faz pensar, rir, chorar. O trabalhador utiliza o corpo, a cognição, a comunicação e sua relação com o próximo. Produz trabalho, afeto, vínculos. No teatro sério discute-se moral, ética, história e, sobretudo trabalha-se e aprofunda-se o relacionamento humano. O teatro ensaia o indivíduo para a vida. O teatro agrega diversas manifestações artísticas: a arquitetura, figurino, iluminação, dramaturgia, poesia, literatura, música, dança. É terapêutico para quem assiste e para quem o pratica.

Desde a Grécia Antiga a Medicina e o Teatro estão intimamente ligados (Santuário de Esculápio e o grande o teatro de Epidauro).  Segundo o filósofo Aristóteles pessoas angustiadas e psicologicamente perturbadas poderiam se sentir mais relaxadas e felizes ouvindo certos tipos de música. A representação dramática e de cenas da mitologia fazia parte da cura e não era vista apenas como recreação lúdica e lazer. A representação trágica dos deuses dava nova vida a símbolos de fundamental importância para o processo de cura. A atenção principal era dirigida principalmente ao homem interior, ao espírito. A ação medicinal era voltada ao homem invisível, dando importância ao sono e à interpretação dos sonhos. O tratamento físico se baseava na regeneração psíquico-espiritual.

A música pode também ser uma excelente opção prática. Várias empresas adotam corais de trabalhadores. Cantar junto demanda ouvir o outro, trabalhar em equipe, além de trabalhar a sensibilidade. Nas aberturas dos dois últimos Congressos Paulista de Medicina do Trabalho, da APMT, houve a apresentação de corais coorporativos – Coral Graber (2015) e Coral do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (2019). Este último faz um trabalho belíssimo com maestro, professora de canto. São ministradas aulas de canto e ensaios, para os colaboradores e também aberto à comunidade. São feitos recitais frequentes do coral para os pacientes internados no hospital.

Outras atividades que desenvolveriam a criatividade e a saúde do trabalhadores podendo ser implantadas nos diversos ambientes de trabalho são as oficinas de artesanato, de pintura, de cerâmica, de culinária, de fotografia, entre outras.

A arte pode melhorar as relações humanas e consequentemente o ambiente de trabalho, fazer o homem refletir e corrigir suas condutas e, sobretudo pode alegrar as pessoas.

O médico atua com o conhecimento, a vocação, a inspiração e a intuição. O artista trabalha com a imaginação, a inspiração e a intuição. A verdadeira missão do artista é animar: dar alma, vida. A missão do médico do trabalho é cuidar para que a vida do trabalhador tenha o menor risco possível de agravos à sua saúde. A Arte pode dar alma ao Trabalho.

 

Fábio Secolin e Vera Lúcia Zaher-Rutherford

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