CONTEXTO ATUAL E O REAL DO TRABALHO

Claudio Brunoro (Instituto Trabalhar)

Quando pensamos no contexto atual que se apresenta, muitas questões suscitam relevância e merecem alguns minutos para reflexão. Dentre elas, a questão relacionada ao trabalho torna-se muito importante para muitos profissionais. Claro que esta temática é imensa e ser capaz de abordar todas suas facetas seria algo que exigiria muito de todos. Portanto, pensando especialmente no contexto vivido pelo Médico do Trabalho, podemos percorrer algumas questões que podem ser relevantes, tanto para sua própria vivência quanto para a população de trabalhadores que atende.

Um dos assuntos refere-se ao que aconteceu com muitas pessoas, em que, de repente, tiveram sua atuação profissional simplesmente interrompida por diversos motivos. Num primeiro momento, especialmente no início deste cenário, talvez até uma sensação de pausa e oportunidade para descansar. No entanto, com este cenário se estendendo por mais tempo, muitos perceberam que estavam vivendo uma situação fora de seu controle: a de querer e poder trabalhar, mas impedidos disso.

Diversas questões emergem nesta configuração, como, por exemplo, a questão da utilidade. Se estou impedido de atuar profissionalmente, até que ponto sou útil? A discussão de utilidade é algo que vai muito mais além do que simplesmente uma compensação financeira, ela está intimamente relacionada a nos questionarmos quanto a nossa Identidade.

Sem aprofundar muito neste sentido, se por um lado a Identidade é uma construção dinâmica da unidade da consciência de si, daquilo que faz o sujeito ser único (aquilo que define você ser você), por outro ela também traz a possibilidade de coerência e estabilidade que são necessárias no enfrentamento do real do trabalho. Dito de outra forma, a Identidade é a armadura da saúde psíquica e, consequentemente, uma Identidade fragilizada pode ser propícia para situações de sofrimento que podem levar ao adoecimento.

Desta forma, o trabalho tem um papel importante nesta dinâmica, uma vez que, quando manifestado e reconhecido como útil, auxilia na construção e reforço da identidade. Por outro lado, não poder ter uma manifestação de utilidade pode levar a nos sentirmos inúteis, mesmo que não seja este o caso. Poder oferecer uma escuta mais sensível para este tipo de situação sempre é importante para quem se encontra nesta situação.

Já para quem trabalha com a responsabilidade de gerir pessoas, que podem estar enfrentando uma redução paulatina de solicitação de serviços, há outro agravante: como equilibrar a ausência de serviços com as despesas que permanecem, especialmente as salariais? Esta discussão pode ser feita de diversas maneiras, mas a que queremos dar relevo aqui é o fato de como é possível desenvolver um critério que ao mesmo tempo considera o cenário atual e permite debater algo que é relevante para todos? Em geral, quem precisa decidir situações como estas tem que decidir sozinho e dificilmente tem com quem debater tais assuntos. Quanto mais alto o nível hierárquico, mais solitário se torna. Se foi possível construir ambientes favoráveis para a deliberação e para firmar acordos com as equipes, a possibilidade de uma cooperação vertical torna-se uma eventual saída.

No entanto, se a instituição já praticava estilos pouco compatíveis com uma versão mais atual da gestão de pessoal, como é o caso de perspectivas mais diretivas e pouco participativas, é bem provável que o sentimento para muitos seja de muita incerteza e de medo. Talvez, inclusive, na busca por manter os resultados projetados inicialmente, estejam cobrando mais das pessoas e provocando demissões (ou ameaças delas) ao invés de repensar coletivamente o que é possível para um cenário como este que certamente era muito difícil de ser previsto.

Neste sentido, muitos dos profissionais dos serviços de saúde do trabalho relatam estarem cada vez mais ouvindo pessoas que manifestam não estar aguentando mais ou algo semelhante. A mudança para o trabalho remoto (completamente adaptado) exigiram diversas adequações que nem sempre foram suficientes para a nova realidade. Muito disso se explica pela rapidez necessária para os ajustes, mas, principalmente, pelo fato de, mesmo sendo uma nova situação de trabalho, não foram em todos os casos em que recalibraram as metas e de prioridades por parte da empresa e gestores. Isso pode provocar a falsa impressão para quem está trabalhando que tudo deveria estar funcionando como antes e que se as entregas não estão acontecendo, talvez a culpa seja dele. Ainda, além da residência não estar apropriada para o trabalho, há todas as exigências domiciliares e familiares a serem consideradas, algo que não condiz com o aparente imaginário de que as pessoas seriam mais produtivas em casa.

Na ausência de reflexões coletivas mais profundas pela própria empresa, equipe ou entre alguns colegas, torna-se muito desafiador esta situação quando enfrentada individualmente ou implicitamente colocada como de responsabilidade de cada um. Na ausência de troca sobre esta vivência, considerar-se a “causa” da sua própria não produtividade é muito comum e, até, pode aumentar muito a ansiedade.

Todas estas situações trazem muitos desafios para a atuação do médico do trabalho, uma vez que pode estar em uma organização em que as pessoas que trabalham relatam estes impasses. Ao mesmo tempo, o próprio médico do trabalho pode estar vivenciando alguns destes dilemas e, talvez, também seja importante ter um espaço de escuta para falar e ser ouvido sobre tais inquietudes.  Por exemplo, viver o dilema de seguir aquilo que está na sua essência e deontologia profissional ou enfrentar questões mais dialéticas que podem levar a dilemas éticos.

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