Segurança e Saúde no trabalho para a trabalhadora gestante e lactante

Quando a “Lei” ignora o “Saber”

Leis são elaboradas por especialistas. Para fazê-las, os legisladores se baseiam em normas recolhidas e escritas que refletem, de alguma maneira, a experiência das relações humanas. Desta forma, ligam os fatos, ou os acontecimentos, ao Direito. Vista desta maneira, as Leis abrangem os costumes, ou seja, regras sociais resultantes de uma prática, generalizada e prolongadamente, reiterada. Isto confere às Leis certa convicção de obrigatoriedade. Portanto, para serem apropriadas, basta que elas, em sua essência, reflitam as especificidades daquela sociedade e daquela cultura.

Se isto, genericamente, resolve a questão, não podemos esperar o mesmo resultado no caso da legislação relativa à Saúde Ocupacional (regulada pelas  NR – Normas Regulamentadoras da CLT e artigos da CLT que delas dependem e/ou que a elas estão relacionados). Isto porque as NR, para sua aplicação, obrigam leitura técnica especializada e individualizada das atividades laborais, considerando aqui objeto, método, posto, organização e ambiente de trabalho.

Assim, toda vez e sempre que for produzida uma Lei na área trabalhista, para evitar erros grosseiros e idas e vindas geradas por decisões equivocadas, é fundamental e indispensavel consultar os especialistas em Segurança e Saúde no Trabalho. 

Esta verdadeira distocia vem ocorrendo, há quase tres anos, a partir da publicação da Lei Nº 13.287 em 11 de maio de 2016 que acrescentava à CLT o artigo 394-A que proibia o trabalho da gestante ou lactante em atividades, operações ou locais insalubres com a seguinte redação: “A empregada gestante ou lactante será afastada, enquanto durar a gestação e a lactação, de quaisquer atividades, operações ou locais insalubres, devendo exercer suas atividades em local salubre”.

A simplicidade da redação para legislar assunto tão complexo, fruto da ignorância e/ou precipitação do legislador, gerou mais dúvidas e controvérsias que benefícios para a trabalhadora.  A primeira delas dizia respeito ao alvo da proteção: A gestante? A gestação? O concepto? A lactente? O lactante?  Do ponto de vista técnico são elementos distintos ,cuja avaliação de risco adquire maior complexidade quando analisado à luz dos variados agentes de riscos ocupacionais.

Mas, Lei publicada, cumpra-se a Lei! Ou seja, a orientação foi que  todas as gestantes e lactantes que trabalhavam em “atividades, operações ou locais isalubres” fossem delas afastadas. Isto causou considerável impacto para as empresas, especialmente no caso da lactante, uma vez que é desejável que o aleitamento materno seja mantido até os dois anos de vida da criança. Além disso, cessada a condição insalubre, de acordo com a legislação trabalhista, cessa o pagamento do adicional de insalubridade, o que, por vicio de aplicação, no Brasil, é considerado como parte do salário, desistimulando, portanto, o aleitamento materno com grande prejuizo para o desenvolvimento da criança.

Nenhum estudo foi feito ou relatado para sustentar cientificamente a Lei. Entendemos que isto deveria ter ocorrido uma vez que a matéria não está relacionada aos costumes sociais e sim à possibilidade de doença ou agravo para a trabalhadora e, neste caso, para a vida que está sendo gerada ou a criança que está sendo amamentada. Destarte, invés de proteger a mulher trabalhadora, esta Lei, da forma como proposta, veio: a) impactar negativamente no mercado de trabalho para as mulheres em idade fértil; b) desestimular a gravidez; e c) levar ao desmame precoce dos recem-nascidos.

Esta situação é mais dramática no caso de atividades em que a mão-de-obra feminina prevalece, como nos serviços e estabelecimentos de saúde.

Este caos gerencial levou à publicação da Lei  Nº 13.467 de 13 de julho de 2017 (D.O.U. de 14/07/2017) que modificou a redação do Art. 394-A garantindo à trabalhadora afastada de suas atividades “sua remuneração, nesta incluído o valor do adicional de insalubridade…”. Esta nova redação também agregou, precipitada e equivocadamente, novas variáveis, a saber: a) a necessidade de apresentar atestado de saúde, emitido por “médico de confiança da mulher, que recomende o afastamento durante a gestação ou lactação das atividades consideradas insalubres”; e b) a aplicação da Lei  Nº 8.213 de 24 de julho de 1991, ou seja, a possibilidade de afastamento do trabalho com percepção do salário-maternidade por considerar como gravidez de risco sempre que não for possível que a trabalhadora (gestante ou lactante?) exerça atividade em local salubre na empresa.

Observa-se neste texto legal interpretação equivocada sobre a concessão do adicional de insalubridade em dois aspectos fundametais: a) na medida que o considera como parte da remuneração e; b) mantendo seu pagamento, apesar da eliminação do risco, contrariamente ao que preconiza a NR 15, fato que criará um problema de registro no eSocial, pois estará pagando o adicional de insalubridade durante um período em que não estará sendo registrado risco ocupacional, gerando inconformidade. Outra impropriedade está no ato de conferir ao chamado “médico de confiança” da trabalhadora o poder de considerar uma área ou atividade salubre ou insalubre, sem a obrigatoriedade de visitar e analisar tecnicamente os postos, processos e ambientes de trabalho. Fica claro que o legislador demonstra desconhecimento quando também ignora a figura dos especialistas em engenharia de segurança e medicina do trabalho, profissionais que detêm a  competencia para tal avaliação. Ao abrir a possibilidade da licença-maternidade, por sua vez, cria uma rota de fuga que certamente impactará nos gastos da Previdência Social e, sem dúvida, havendo discordância do perito, poderá deixar a gestante ou lactante já fragilizada, no “limbo previdenciário”.

Para piorar o quadro, em 14 de novembro de 2017, tramitou a Medida Provisória Nº 808 que retirava o direito ao adicional de insalubridade, determinava que o tal “médico de confiança” da gestante ou lactante poderia ser  do “sistema privado ou público de saúde” ao qual caberia decidir, no caso de atividades e operações de graus médio ou mínimo (definidos por quem?) pela permanência da trabalhadora gestante mediante atestado, e,  de forma análoga, decidir pelo afastamento da trabalhadora lactante. Desnecessário comentar as impropriedades desta proposta, pois, afortunadamente caducou por decurso de prazo. Porém, demonstrou o quanto nossos legisladores ignoram  conhecimento técnico e resistem em consultar especialistas por meio de sua associação corporativa, no caso a Associação Nacional de Medicina do Trabalho (provavelmente desconhecem sua existência!).

Agora, tramita no Senado o Projeto de Lei Nº 11.239/2018  que: a) mantem a figura do “médico de confiança, do sistema privado ou público de saúde” e do respectivo atestado autorizando a permanência da gestante ou lactante no exercício de suas atividades quando o grau de insalubridade for considerado médio ou mínimo; b) mantem a concessão do adicional de insalubridade; c) mantem o recurso de, no caso de indicação de transferencia para atividade salubre e isto não for possível, considerar o caso como gravidez de risco que “ensejará percepção de salário-maternidade durante todo o período de afastamento”.

Ora, longe de aprimorar uma Lei pessimamente construída, esta proposta ratifica os equívocos das anteriores, tais como: a) quem define o grau de insalubridade e quais as atividades e operações salubres disponíveis para a transferência da trabalhadora gestante ou lactante? b) como ficam os registros no eSocial no caso da trabalhadora receber o adicional de insalubridade apesar de trabalhar em atividade considerada salubre? c) quando for o caso, quem define a condição da trabalhadora como gravidez de risco e quem providencia este encaminhamento? d) se é garantida a percepção da Licença Maternidade para a gestante e lactante, esta licença será garantida pelo menos até completar dois anos mínimos recomendados pela OMS para o aleitamento materno?

Estamos, portanto, diante de uma Lei inadequada, desde seu início, de acordo com a lógica da segurança e da saúde do trabalhador, certamente pelo desconhecimento dos legisladores. Pior que isso, apesar de ficar clara a fragilidade e pontos controversos, contraditórios e ilegais dessa Lei, os legisladores insistem em remendá-la sem consultar os especialistas na área.

Escrito por: Dr. Marcelo Pustiglione

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