Entrevista realizada pela APMT ao médico e psicanalista Dr. Christophe Dejours durante o 10º Colóquio Internacional de Psicodinâmica e Psicopatologia do Trabalho realizado entre 21 a 23 de agosto de 2019.

O Brasil é um dos países onde a Psicodinâmica do trabalho é mais conhecida e discutida.  Qual conselho você daria,  aos médicos do trabalho, para aproximar esta área de conhecimento, da sua prática, em particular, no Brasil?

Em geral, não sou muito inclinado a dar conselhos.

Em Psicodinâmica do Trabalho, como em Psicanálise, espera-se a demanda.

O que os médicos do trabalho desejariam? Quais as suas necessidades?

 Eu me debruçaria, primeiramente, sobre esta questão, ao invés de dar, diretamente, conselhos a estas pessoas sem saber onde, de fato, elas se encontram. Mas, de qualquer forma, penso que, provavelmente ,  exista um caminho a ser transposto  no que diz respeito à elucidação da situação da medicina do trabalho, à qualidade do trabalho e aos serviços prestados pelos médicos do trabalho, às dificuldades que encontram, hoje, na sua profissão ,  considerando-se as circunstâncias particulares do Brasil, mas não , necessariamente,  do Brasil, como um todo, posto ser este, um “continente”, mas ,localmente, em certos lugares, reunir médicos do trabalho para refletirem, juntos, sobre esta questão:- como funciona, efetivamente, a medicina do trabalho, hoje, no Brasil e quais as questões que vocês encontrarão? Quando eu digo “ as questões que vocês encontrarão”, não me refiro, diretamente, às questões institucionais ou estatutárias, mas a uma questão bem mais precisa, que é esta :- quais  dificuldades, os médicos do trabalho encontram ,no exercício de seu trabalho? Qual é o trabalho específico do médico do trabalho, notadamente, seu trabalho clínico, a relação entre a Clínica e o que diz respeito especificamente às questões de saúde mental e trabalho, com relação à prevenção. Não sei, exatamente, o que acontece, hoje, no Brasil. Mas, em países como a França, os médicos do trabalho se limitavam, em princípio, em seu exercício, à prevenção. Cuidado, prevenção. Mas, tratamento, não. Então, quando se toca nas questões de saúde mental, não se pode separar investigação clínica, do próprio tratamento , na medida em que a própria investigação clínica incide sobre o estado moral dos pacientes ou assalariados que vêm falar. Não há neutralidade na investigação. Se você escuta um trabalhador falar, acontece alguma coisa entre ele e você que transcende a investigação e que já é uma ação. Assim, há uma transformação da prática clínica da medicina do trabalho, a partir do momento onde ela se interessa pela dimensão da saúde mental, no trabalho.

Daí,a questão que se coloca se refere às dificuldades que os médicos do trabalho brasileiros encontram, numa determinada zona de atuação, em certa região do país e, como respondem ao sofrimento dos trabalhadores que os procuram. Penso ser parecido, aqui no Brasil onde há anos, venho. A parte do sofrimento psíquico, no conjunto da clínica e no conjunto da prática dos médicos do trabalho, vem aumentando. Antes, não se colocavam estes problemas. Hoje, eles ocupam um lugar muito importante. Então, isso modifica, por vez, a clínica, a prática e o verdadeiro problema que irão encontrar, caso discutam, em grupo, com os médicos do trabalho sobre os problemas que esta clínica lhes trazem, como médicos do trabalho- posto que os médicos do trabalho não são a mesma coisa que os psicólogos do trabalho, nem a mesma coisa que um psicanalista que atende,  no seu consultório, nem um assistente social, e nem um responsável pelos recursos humanos. Vocês têm uma responsabilidade específica. Então, a particularidade de seu fazer profissional e, aquilo que considero a principal dificuldade, é a escuta. Porque nosso principal instrumento, no campo da saúde mental, no trabalho, é justamente, não dar conselhos. Quais conselhos? Eu não tenho conselhos a dar para os médicos do trabalho porque eu não sei… Se escuto os médicos do trabalho brasileiros, eles vão começar a falar das dificuldades que encontram no trabalho e , desta discussão, nascerão questões específicas e, continuando a falar e a discutí-las , surgirão deliberações sobre a forma de tratar estas dificuldades e , posteriormente, as regras do trabalho. Então, a questão é como se transforma ou como pode se transformar o fazer do médico do trabalho, a partir do momento onde, na medicina do trabalho, se concede um lugar, muito mais importante, à questão da escuta, do que se concedia, no passado. Saber escutar as pessoas. E escutar as pessoas é, somente, escutá-las falar. E é esta, a dificuldade. Não é somente escutá-las falar de seu sofrimento, ou de seu prazer, no trabalho, ou de sua amargura ou de seus sentimentos. O que é preciso, e é esta a especificidade, é do “approach” psicanalítico. É verdade que se chega a escutar a relação que os assalariados têm com os aspectos materiais dos seus trabalhos. É preciso passar pela descrição do trabalho. Da mesma forma, se vou discutir com os médicos da região de São Paulo, escutarei quais são as dificuldades, então eu serei obrigado a entrar na matéria médica. Quanto tempo vocês têm para ver um paciente? Vocês vêm? Todas as questões materiais, todas as pressões que envolvem o trabalho e que atrapalham, que trazem dificuldades em comparação a aquilo que seria o ideal, quer dizer, ter mais tempo para ver cada assalariado. Talvez, mesmo, após vê-lo uma vez e julgar que não é o suficiente, marcar uma nova consulta, alguns dias depois, para poder completar o que ficou pendente do primeiro encontro. Não se pode fazer isto. Em geral, há muito trabalho. Todas estas pressões. Como negociar com estas pressões? Como você negocia? Como o outro médico do trabalho negocia? E, aqui, é preciso discutir :- quem está mais perto do  compromisso assumido? Como você faz… Como o outro faz….e, pouco a pouco,  a coisa vai acontecendo. É a partir destes elementos de discussão sobre o trabalho dos médicos que podem começar a se constituir acordos entre os médicos sobre uma certa maneira de trabalhar, válida até que o tempo prove o contrário. Pode ser que, um ano depois, vocês critiquem os acordos normativos firmados, hoje. E é exatamente assim, pouco a pouco, que se constrói a profissão. E é este mesmo exercício que é necessário, primeiramente, se fazer, na medicina do trabalho, para apreender, não somente a escutar as pessoas, mas passar pela experiência de que , quando for preciso discutir entre os médicos sobre quais são, verdadeiramente, as dificuldades do trabalho, não se encontre nada diferente disto. Qual é a prática do médico do trabalho? Vocês querem me contar o que é o trabalho de vocês? Querem que façamos um exercício?  Se eu escuto vocês e se lhes peço para que falem, perceberão que, depois de uma hora de discussão comigo, vocês terão compreendido, de outra forma, a profissão de vocês. Então, não é assim, tão fácil, mesmo para um médico , falar de seu trabalho efetivo. Se você pergunta a um cirurgião como ele trabalha, vocês perceberão que é muito pobre o que ele é capaz de contar sobre sua profissão, em comparação à realidade. O que ele lhes responde, quando vocês lhe fazem uma pergunta? Ele lhes responde o que ele “deve” fazer. O protocolo. “É assim que se deve operar”. Mas a realidade não é o que ele faz. Ele não faz o que ele diz. Para descrever de como ele vai,daquilo que é o protocolo, a prescrição, a forma canônica da intervenção cirúrgica e como ele as  adapta à realidade … É o aparelho que não funciona, o foco de luz que quebra, a luz que não acende, a falta do bisturi ou de uma pinça… O que fazer ? Há pouco, tivemos uma comunicação sobre o SAMU e vimos quais são as reais condições de trabalho …Qual é o trabalho real do médico? É a mesma coisa com todos os trabalhadores. Se você quiser acessar a alavanca pela qual podemos transformar o sofrimento no trabalho, é preciso elucidar a relação entre o assalariado e o seu trabalho. É preciso, primeiramente, que ele próprio se escute. É preciso, também, que ele diga coisas que ele não sabe dizer, é preciso, talvez, que ele não discuta com seus colegas, que ele não discuta com seus superiores da hierarquia e, quem sabe, porque você o  escuta, pela primeira vez, ele comece a tentar lhe explicar e, nesta explicação que ele lhe dá, ele comece a dizer coisas sobre as quais, ele jamais havia pensado, até então. É este o milagre da fala, mas para que este milagre da fala permita ao operário, ao assalariado que está à sua frente, que ele pense seu trabalho, de outra forma, é preciso que você seja capaz de escutá-lo. Logo, é preciso que você se cale. Eu não tenho conselho. “ Espere! ”, Vamos ver”, “Tentarei compreender!”:- esta postura é muito mais produtiva, porque ela ajuda, ou, permite ao operário, ao assalariado, ao cirurgião, ao juiz… pensar. 

E se ele pensa de outro jeito, sua relação com seu trabalho, após o encontro com você, talvez  lhe venham ideias sobre a maneira de mudar sua relação com o trabalho e exatamente, aí, começa o trabalho de transformação. Vocês vêm? Sim… A etapa principal é :- primeiro, que os médicos do trabalho sejam capazes de experimentar, entre si, “um escutar o outro”. Segundo: falar perante os outros, ousar falar sobre as dificuldades encontradas em seus trabalhos. E é exatamente, aqui, que a coisa começa. Se somos capazes de fazer conosco, somos capazes de fazer com os assalariados que nos procuram. Não é um conselho. Apenas lhes conto minha experiência com os médicos do trabalho.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Matérias Semelhantes:

Busque por período: