Sequelas pós COVID.

A pandemia de COVID-19 é uma emergência em saúde pública. Em 20/03/2020, o Brasil reconheceu a transmissão comunitária do novo coronavírus (SARS-CoV-2) em todo território nacional e, desde então, observamos um aumento exorbitante no número de casos, nos colocando em terceiro lugar no ranking mundial.1  Após o pico da epidemia e início de uma queda lenta na curva epidêmica, nos deparamos com as consequências tardias da doença: indivíduos com queixas persistentes após a infecção. Há inúmeras publicações sobre a apresentação clínica e tratamento da fase aguda da COVID-19, mas pouco se sabe sobre as sequelas, sintomas crônicos e manejo dessas complicações.2

Em Roma, acompanhamento de 143 pacientes hospitalizados por COVID-19, após dois meses do início dos sintomas, mostrou que apenas 12,6% dos pacientes estavam livres de sintomas atribuídos à doença. Dentre os sintomáticos, astenia ou fadiga foi a queixa mais comum (53,1%), seguida de dispneia (43,4%), artralgia (27,3%) e dor torácica (21,7%). Tosse, anosmia, coriza, disgeusia, odinofagia, mialgia, diarreia, vertigem, cefaleia, olhos secos e hiperemia conjuntival também foram relatados. Piora expressiva na qualidade de vida foi observada em 44,1%.3

Em coorte espanhola de 118 pacientes, após 50 dias da alta hospitalar por COVID-19, foi observado que 62,5% dos indivíduos apresentava persistência de sintomas, sendo mais comuns dispneia (31,4%), astenia (30,5%), mialgia (13%), tosse (5%), anosmia (1,7%) e ageusia (1%).4 Na França, em 279 pacientes acompanhados por 110 dias após internação, além de fadiga (55%) e dispneia (42%), foram relatados comprometimento da memória (34%), dificuldade para concentração (28%), distúrbios do sono (30,8%) e queda de cabelos (20%).5

Sintomas cardiopulmonares também são comuns após a fase aguda da doença, como expectoração, dor ou pressão torácica, disfonia e palpitações. Casos mais graves podem evoluir com distúrbios ventilatórios restritivos e fibrose pulmonar. Há, ainda, risco de eventos tromboembólicos tardios.6 O prejuízo à qualidade de vida é tão significativo que, em coorte de 118 pacientes, 50 dias após diagnóstico, apenas 69% dos indivíduos havia retomado suas atividades laborais. Dentre os pacientes que praticavam atividade física regularmente antes da COVID-19 (n=39), 71,8% (n=28) estava apto a retomar suas atividades.5 Os estudos propõem reabilitação precoce com fisioterapia motora e respiratória para os pacientes com queixas cardiopulmonares persistentes.7

Patologias psiquiátricas, como transtornos de ansiedade, depressão e síndrome do estresse pós-traumático também foram frequentes.5,7

Do ponto de vista neurológico, além das sequelas decorrentes de eventos vasculares cerebrais e de polineuropatia do doente crítico, relacionados a apresentações graves da doença, piora de cefaleia prévia ou surgimento de nova cefaleia têm sido descritas. O estresse e infecções virais são considerados possíveis gatilhos de enxaquecas e outras cefaleias crônicas. Nesses casos, há um aumento na frequência e/ou na intensidade da cefaleia, com características semelhantes às apresentadas previamente. O uso abusivo de analgésicos e anti-inflamatórios, comumente prescritos na fase aguda da infecção pelo SARS-CoV-2, também pode causar cefaleia induzida por medicamentos. Paradoxalmente, há piora progressiva da dor com o uso dessas medicações, agravada com o aumento da dose, e alívio com a suspensão ou redução de dose. A maioria dos casos de cefaleia pós-COVID não requer hospitalização e pode ser manejada ambulatorialmente. É importante excluir outras causas, através de exames de imagem (tomografia computadorizada ou ressonância magnética de crânio), assim como buscar sinais e sintomas sugestivos de meningite e, sempre que possível e houver indicação clínica, proceder análise do liquor.8,9

Muitos autores correlacionam os sintomas crônicos pós-COVID com a Síndrome da Fadiga Crônica Pós-viral (FCPV), já relatada após infecções por outros vírus, como o Epstein-Barr, Coxsackie, Enterovírus e Herpes vírus humano tipo 6 (HHV6), para a qual não há tratamento específico, apenas controle de sintomas.10 A FCPV é caracterizada por fadiga, mal estar, mialgia, perda da capacidade de concentração e, ocasionalmente, artralgia.11

Alguns sintomas persistentes pós-COVID são relacionados à disautonomia. microangiopatia, lesão endotelial e lesão neural direta foram documentadas em estudos de necrópsia de pacientes com doença grave.10,12 Outra hipótese para a persistência dos sintomas é a presença de um componente imunomediado de lesão tecidual, em que a presença do SARS-CoV-2 funciona como gatilho.10

Pacientes com queixas persistentes, sobretudo oito semanas após o diagnóstico da COVID-19, devem ser submetidos a investigação de sequelas com exames complementares direcionados pelas queixas, como testes bioquímicos, incluindo marcadores de autoimunidade, ecocardiograma transtorácico, tomografia computadorizada de tórax e/ou crânio e provas funcionais, como prova de função pulmonar e teste de esforço cardiopulmonar, se necessário.10

Com o passar dos meses, estamos aprendendo que pacientes recuperados da COVID-19 podem apresentar sintomas prolongados e descompensação de suas patologias de base. É fundamental investigar sequelas relacionadas ao remodelamento tecidual/fibrose dos diversos aparelhos, principalmente em pacientes com mais de três meses de sintomas, e trabalhar em parceria com os especialistas, principalmente pneumologistas, cardiologistas, psicólogos, psiquiatras, neurologistas e fisioterapeutas. É importante treinar as equipes multiprofissionais e criar programas de reabilitação. São necessários, no entanto, mais estudos para compreendermos o impacto a longo prazo da COVID-2019 e quais medidas eficazes para combater suas sequelas.

 

Referências:

  • Information about COVID-19 – World Health Organization. Disponível em https:// int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019, Acesso em 08/11/2020.

 

 

  • Carfi A, Bernabei R, Landi F. Persistent Symptoms in Patients After Acute COVID-19 (Letter) JAMA. August 11,2020; 324:6.

 

 

  • Garrigues E, Janvier P, Kherabi Y, Le Bot A, Hamon A, Gouza H et al. Letter to the Editor/ Journal of Infection September 9,2020; 13:21.

 

  • Ceravollo MG, Arienti C, De Sire A, Andrenelli E, Negrini, F, Lazarrini S et al. Rehabilitation and Covid-19: the Cochrane Rehabilitation 2020 rapid living systematic review. European Journal of Physical and Rehabilitation Medicine 2020 Jul 24.

 

  • Rooney S, Webster A, Paul L. Systematic Review of Changes and Recovery in Physical Function and Fitness After Severe Acute Respiratory Syndrome–Related Coronavirus Infection: Implications for COVID-19 Rehabilitation. Phys Ther. 2020;100:1717–1729.]

 

  • Rocha-filho PAS, Voss L. Persistent Headache and Persistent Anosmia Associated With COVID-19. Headache 2020; 60:1797-1799.

 

  • International Headache Society. The International Classification of Headache Disorders,3rd edition 2018. Cephalalgia 2018, Vol. 38(1) 1–211.

 

 

  • Hotchin NA, Read R, Smith DG, Crawford DH. Active Epstein-Barr virus infection in post-viral fatigue syndrome. Journal of Infection (I989) x8, I43-I50.

 

  • Romero-Sanchez CM, Diaz-Maroto I, Fernandez-Diaz E, Sanchez-Larsen A, Layos-Romero A, Garcia-Garcia J et al. Neurologic manifestations in hospitalized patients with COVID-19. Neurology.vol.95. N.8.August 25,2020.

 

 

Juliana V. S. Framil

Médica do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do Instituto da Criança e do Adolescente e Instituto de Tratamento do Câncer Infantil do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP)

Médica infectologista dos hospitais AC Camargo Cancer Center, Hospital Alemão Oswaldo Cruz e Prevent Senior.

 

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