A telemedicina esteve no centro das recentes discussões sobre o uso da tecnologia na saúde, sobretudo em virtude da janela regulatória aberta em razão da pandemia da Covid-19, na qual foram editados atos normativos regulando a prática em todo o território nacional. Com a Portaria do Ministério da Saúde nº 467/2020, seguida da Lei Federal nº 13.989/2020, restou autorizada a telemedicina em caráter excepcional e temporário, e definidos seus requisitos mínimos como o registro em prontuário clínico, a aplicação de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e os parâmetros para a assinatura eletrônica de documentos médicos.
Essa autorização, contudo, não veio reverter uma proibição, já que não havia barreira regulatória expressa à telemedicina no país. Tanto é assim que a prática já era uma realidade no Brasil pré pandemia em vertentes como o monitoramento e o diagnóstico, este último regulado há mais de 10 anos pelo Conselho Federal de Medicina (“CFM”)[1]; e amplamente incentivada, inclusive pelo Sistema Único de Saúde (“SUS”), através de iniciativas como o Telessaúde Brasil Redes[2] e outras desenvolvidas no âmbito do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (“ProadiSUS”).
O que explica, neste cenário, a necessidade de uma autorização expressa para a prática da telemedicina é a falta de uma regulação anterior específica e clara, que enfrente questões relativas à (i) ética e exercício profissional; (ii) privacidade e (iii) segurança e qualidade da assistência, entre outras. Com a autorização excepcional dos órgãos reguladores, o uso da telemedicina cresceu de forma expressiva tanto em virtude da necessidade de reduzir a demanda presencial nos ambulatórios e consultórios, minimizando a exposição ao vírus, quanto pela segurança jurídica que garantiu aos médicos e demais profissionais de saúde.
A telemedicina vem sendo amplamente discutida no mundo ocidental desde a década de 90, tendo como marco a 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, realizada em outubro de 1999, que aprovou, após discussão entre as associações membro, a chamada Declaração de Tel Aviv sobre Responsabilidades e Normas Éticas na Utilização da Telemedicina (“Declaração de Tel Aviv”). O documento definiu a telemedicina, seus princípios e as responsabilidades do médico e do paciente, ressaltando as suas vantagens potenciais e focando em estabelecer parâmetros mínimos para evitar problemas éticos decorrentes desta prática.
A manifestação formal do CFM sobre o tema se deu em agosto de 2002, quando aprovada a Resolução CFM nº 1.643/2002, ainda vigente, que em certa medida incorpora à regulação nacional a Declaração de Tel Aviv, reforçando a responsabilidade profissional no atendimento médico[3]. Apesar da norma não restringir a prática da telemedicina, parte do arcabouço regulatório anterior do CFM estabelece conceitos limitantes para, por exemplo, a teleconsulta, quando proíbe a prescrição sem exame direto do paciente salvo nas situações de urgência ou emergência[4], ou define a consulta médica como o ato médico que compreende o exame físico do paciente[5].
Em fevereiro de 2019 foi editada a Resolução CFM nº 2.227/2019, que se propunha a regular de forma mais ampla os aspectos éticos e de exercício profissional relativos à telemedicina nas suas diversas vertentes. O texto, contudo, foi revogado[6] em virtude do volume de apontamentos recebidos da classe médica, o que não surpreende na medida em que tecnologias como esta, que têm o poder de mudar estruturalmente a prática assistencial, ensejam dúvidas e apreensões.
Apesar deste cenário de dúvidas, há evidências de que médicos e pacientes estão cada vez mais receptivos a esse tipo de prática. Pesquisa da Associação Paulista de Medicina realizada em fevereiro deste ano com 2.258 médicos revelou que 90% deles acreditavam na tecnologia como recurso para reduzir as filas do SUS, e 70% entendiam que, com a telemedicina, o atendimento médico poderia ser ampliado para além do consultório[7]. O caráter promissor dessa tecnologia se vê também pelos investimentos que recebeu, de cerca de USS 18 milhões no Brasil em 2019, o que corresponde a quase 8% do total de recursos injetados em healthtechs[8].
Daí a relevância e a urgência da discussão acerca dos aspectos éticos da telemedicina. A construção de normas éticas claras é um pilar global para o uso da telemedicina e pretende resguardar os próprios profissionais, inclusive impulsionando a necessária mudança cultural que deve vir a reboque destas incorporações tecnológicas, com possibilidades de transformação social.
A finalidade da regulação é justamente intervir minimamente na atividade econômica para garantir que seja preservado o interesse público, em detrimento de qualquer vontade particular, preservando também as liberdades e garantias individuais[9]. Este é o momento de discutir os limites dessa intervenção mínima, atendendo especialmente aos interesses dos pacientes e, sem generalizações, preservando a autonomia dos profissionais e do ato médico. Todas as posições são válidas, exceto a de se esquivar do debate.
[1] Regulação para as especialidades de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (Resolução CFM nº 2.107/2014) e Patologia (Resolução CFM nº 2.264/2019).
[2] Regulado pela Portaria de Consolidação do Ministério da Saúde nº 03/2017. Mais informações em https://www.saude.gov.br/telessaude.
[3] Nesta mesma esteira foram aprovadas normas específicas para a telessaúde por parte de dos Conselhos Federal de Fonoaudiologia (Resolução CFFa nº 427/2013) e Psicologia (Resolução CFP nº 11/2018), além das normas mais recentes de Fisioterapia (Resolução COFFITO nº 516/2020), Enfermagem (Resolução COFEN nº 634/2020), entre outras, aprovadas no contexto da pandemia da Covid-19.
[4] Limitação prevista no Código de Ética Médica desde a sua versão datada de janeiro de 1988 até a agora vigente, Resolução CFM nº 2.217/2018.
[5] Conforme Resolução CFM nº 1958/2010
[6] Revogação após um mês por meio da Resolução CFM nº 2.228/2019.
[7] Disponível em http://associacaopaulistamedicina.org.br/assets/uploads/textos/Pesquisa-APM-2020.pdf. Acesso em 02/09/2020.
[8] Disponível em http://conteudo.distrito.me/data-miner-healthtech. Acesso em 29/08/2020.
[9] Cabe ao Estado, por meio da regulação, buscar concretizar os valores previstos na Constituição Federal de 1988, atuando com base nos fundamentos previstos no art. 1° e objetivos previstos no artigo 3º desta, obedecendo aos princípios gerais da atividade econômica fundados na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa.
Marília Bartolomei Bortolotto. Advogada graduada pela Faculdade de Direito da USP e especialista em Economia e Negócios pela EESP-FGV, com Certificação em Healthcare Compliance pelo CBEXs – Colégio Brasileiro de Executivos na Saúde, atuante em direito econômico e administrativo focado na regulação do setor da saúde. Membro da Comissão Especial de Direito Sanitário da Ordem dos Advogados do Brasil e da Câmara Jurídica da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica – ABRAMED.